02/12/2007

"A Instrução", de Lúcio Mortimer


Lúcio Otávio Mortimer foi um dos primeiros mochileiros e hippies que conheceram o Daime e resolveram morar com o Padrinho no tempo da Colônia Cinco Mil, ainda na década de 70. Chegou à Colônia Cinco Mil, em 1975, pouco antes da ida do Padrinho Sebastião ao Rio do Ouro. Era considerado o Padre da comunidade, porque, tendo sido seminarista, era ele quem celebrava os casamentos e batizava as crianças no Cefluris, em substituição ao antigo secretário (que se tornou evangélico), o senhor Reinaldo Bento. Solteiro permaneceu ele por muito tempo, até o encontro com a Maria Eugênia, fardada do Céu da Montanha, com quem já no final da vida se uniu em matrimônio na igreja Flor de Jagube. Lúcio fez parte do grupo pioneiro do Céu do Mapiá, e durante muitos anos foi o responsável pela venda da borracha e a compra da feira que abastecia a comunidade. Muito ativo e participativo na comunidade mapiense, criou a Rádio Jagube, foi membro do Conselho Doutrinário e presidente da Associação dos Moradores da Vila Céu do Mapiá, em dois mandatos. Lúcio fez sua passagem em 11 de junho de 2002, deixando a todos muitas saudades.

Edward MacRae, no ensaio “Santo Daime e Santa Maria – usos religiosos de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas”, em “O uso ritual das plantas de poder”, conta que, logo quando de sua chegada à Cinco Mil em 1975, “(...) Lúcio Mortimer, um dos jovens usuários de cannabis, foi tomado de uma necessidade irrefreável de confessar o seu segredo, tendo até de sair do salão ‘para respirar’. De acordo com seu próprio relato, no dia seguinte procurou o Padrinho Sebastião e contou-lhe tudo, mostrando-lhe também um caixote onde havia mudas de Cannabis plantadas. Mas este, longe de se zangar, disse-lhe ter tido, algum tempo antes, um sonho no qual um estranho cavaleiro, cavalgando uma montaria branca e usando uma capa preta, anunciara que brevemente ele iria mudar para outra linha espiritual. Quando Padrinho Sebastião perguntou-lhe ‘Que linha?’, a resposta foi que ele descobriria por si mesmo. Padrinho Sebastião continuou a caminhar, chegando a um roçado que era cuidado por um homem moreno vestido de branco, o qual lhe entregou um galho de uma planta, dizendo ‘esta é para curar’. Padrinho Sebastião disse que ao receber a oferta acordou, mas que ao ver a plantinha que Lúcio lhe mostrava, lembrou do sonho e ficara com vontade de cultivá-la para fazer a comparação (...) Como entre os hippies havia três chilenos que costumavam chamar a planta de marihuana, e provavelmente, segundo os costumes dos falantes de espanhol, mais simplesmente de ‘Maria’, esta passou a ser conhecida por Santa Maria” e, com o correr do tempo, a parecer ter papel específico na doutrina daimista, já que o tinha na dissidência, e com destaque, à busca de legitimação do seu uso ritual."

Havendo sido testemunha histórica dos primórdios do Cefluris, Lúcio se tornou um referencial importante para os novos irmãos que começaram a acorrer de outras partes do Brasil para o culto do Santo Daime no Acre, propiciando através de sua formação intelectual clássica uma necessária interface entre o "modus vivendi" acreano e o "modus vivendi" dos "sulistas", onde explicava a uns e aos outros a melhor conduta para esse contato intercultural. Nesse sentido, sempre manifestou apoio à proposta de ritualização da Santa-Maria, mesmo quando o próprio Padrinho Sebastião categorizou isso como utopia social e manifestou abrir mão dessa bandeira devido à falta de obediência de seus seguidores em relação ao procedimento por ele idealizado quanto ao uso da planta. Citando depoimentos de Mortimer em "A construção de fronteiras religiosas através do consumo de um psicoativo: as religiões da ayahuasca e o tema das drogas", Sandra Lúcia Goulart explica o uso idealizado da chamada Santa-Maria enquanto acréscimo à Doutrina do Daime:

"Concebida como uma planta divina, ela foi associada à própria Virgem cristã, passando a ser designada, pelos adeptos deste grupo, como Santa Maria. Portanto, a adoção desta nova substância no conjunto ritual das igrejas do CEFLURIS, trouxe também importantes inovações à cosmologia original da linha daimista. Assim, nesta última o chá do daime é relacionado à energia espiritual de Cristo, enquanto nos grupos do CEFLURIS a associação Daime-Cristo combina-se à associação, quase tão relevante quanto a primeira, Erva de Santa Maria-Virgem Maria. (...) Assim, embora um grupo possa considerar-se mais autêntico, mais ordenado ou mais evoluído porque não utiliza a Cannabis sativa, outro grupo que fez ou defende o uso da Cannabis pode entender que suas crenças e práticas rituais são mais evoluídas exatamente devido a este uso. Enquanto alguns grupos procuram evitar ser associados a um contexto de uso de drogas profanas e ilícitas ao recusarem o consumo da Cannabis sativa, outros tentam eliminar esta associação ao sacralizarem esta planta. No CEFLURIS, a Cannabis sativa passou a ser Santa Maria e o usuário desta substância não era um “maconheiro” e muito menos um “drogado”, mas um “mariano”, em referência à ordem católica da Virgem Maria. De qualquer modo, num caso e no outro, o que percebemos é que o consumo (ou não) da Cannabis sativa transforma-se numa espécie de mecanismo capaz de reelaborar crenças, concepções doutrinárias e práticas rituais. "

Lúcio supervisionou muitas das igrejas e núcleos do Daime surgidos em outras partes do Brasil, no decorrer dos anos 80 e especialmente depois do falecimento do Padrinho Sebastião de quem sempre fora companheiro para toda obra. Tardiamente é que Lúcio Mortimer veio a lançar dois livros sobre a obra de Sebastião Mota de Melo e do Mestre Irineu: "Bença, Padrinho" (São Paulo, Edição: Céu de Maria, 2000), e "Nosso Senhor Aparecido na Floresta", (São Paulo, Edição:Céu de Maria, 2001). Quando da criação do IDA-Cefluris, Lúcio Mortimer ao tornar-se o primeiro presidente da instituição declarou os princípios éticos que herdou do Padrinho Mota:

"Vivendo harmoniosamente se pode usufruir o que a floresta oferece à sobrevivência. Pode-se derrubar uma árvore e preservar todo o ecossistema. Esta deve ser a nossa realidade: saber conviver com a riqueza que Deus nos oferece. Nunca ser uma pessoa nociva, gananciosa, destruidora. "Bem-aventurado os humildes de espírito porque deles é o reino dos céus. Bem aventurados os mansos porque herdarão a Terra". Assim disse Jesus. Confio nesta irmandade e vejo que tem muita gente que merece este título. São os que buscam viver na grande harmonia universal, não perseguindo nem prejudicando a seus semelhantes, não poluindo nem maltratando a natureza."

Segundo Maria Eugênia, Lúcio em seus últimos momentos apresentava uma aura santificada - pedia que ela o olhasse bem, que o tocassse, pois ali diante dela estava alguém que tinha alcançado o triunfo maior, nome do seu hino de despedida:

TRIUNFO MAIOR

Posso cantar alegrias da vida
A certeza de ser um filho estimado
Agradeço a São João, meu mestre querido
Que bom ter ouvido o seu chamado

Sigo contente, Jesus vai comigo
Do meu coração é o melhor amigo
Sou filho da terra, nela pequei
Na Santa doutrina me iluminei

Todo louvor na Soberania
Que a nossa Rainha é quem nos guia
Triunfo maior vai no coração
De quem quer ouvir e seguir a Instrução

O hinário "A Instrução", de Lúcio Mortimer (título que veio do nome do hino a ele presenteado na "Nova Jerusalém" do Padrinho), costumava abrir os trabalhos da Festa de São Miguel, antecedendo o "Caboclo Guerreiro". Para se obter o download deste hinário, numa colaboração de Paula Gasparini, clique em:

PARA ASSISTIR: Vila Mapiá - Série de 12 videos streams contendo cenas e depoimentos de Lúcio Mortimer sobre a Doutrina do Santo Daime e ao Céu do Mapiá. Imagens: Oswaldo Carvalho / Edição: Pedro Marques